SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DA BAHIA
Denominações: Santa Casa da Misericórdia da Bahia (1549); Santa Casa de Misericórdia da Bahia
Resumo: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, segundo o historiador Russell Wood, teria sido fundada entre abril de 1549 e agosto de 1552, na cidade de Salvador, na Bahia. A partir de 1816, a Santa Casa passou a ceder parte de suas dependências para o funcionamento da então Academia Médico-Cirúrgica da Bahia; em 1833, as suas enfermarias foram ocupadas para as lições de clínica da então Faculdade de Medicina da Bahia. Além de seus objetivos assistencialistas, firmou-se também ao longo dos séculos como espaço de exercício e ensino da medicina.
Histórico
O nome de Nossa Senhora da Misericórdia era uma das antigas invocações da Virgem Maria, que foi utilizado entre 1240 e 1350 para nomear uma irmandade em Florença. Segundo alguns estudiosos, esse fato teria influenciado Portugal ao criar irmandade de mesmo nome. A bandeira de todas as Misericórdias, através de sua pintura, representava a igualdade com que a Mãe de Deus favorecia e recolhia a todos debaixo do seu manto.
Formada por uma irmandade leiga, a Santa Casa da Misericórdia teve origem em Portugal no final do século XV, por iniciativa do Frei Miguel de Contreiras. Nascido na Espanha em 29 de setembro de 1431, o frei radicou-se em Lisboa, onde teve o apoio da rainha Dona Leonor, viúva de Dom João II, rei de Portugal falecido em 1495. De origem nobre, Miguel de Contreiras exerceu professorado em teologia e foi pregador, o que logo facilitou suas constantes visitas aos palácios reais. Contreiras organizou assim seu primeiro hospital às portas de Santo Antônio da Sé, num casarão em ruínas, mantido graças às esmolas que levantava junto aos seus devotos.
Em 15 de agosto de 1498, foi fundada, então, a confraria da Misericórdia, sob a real proteção de Dona Leonor, que mandou edificar o hospital de Caldas da Rainha, e com a colaboração de seu irmão, o rei de Portugal D. Manuel I, que deu prosseguimento às obras de instalação do Hospital de Todos os Santos, iniciado por Dom João II em 1492. Isto bem antes da confirmação legal da instituição da Misericórdia de Lisboa em 29 de setembro de 1498. Somente em 1502, foi instalado o Hospital Real de Todos os Santos, visando a concentração de todos os hospitais e hospícios da capital portuguesa em um só. Finalizado em 27 de junho de 1564, foi entregue à Misericórdia pelo cardeal Dom Henrique, então regente do trono português.
No Brasil, a necessidade de internação de pacientes destituídos de recursos ou recém-chegados, sem família e sem moradia, acarretou logo no século XVI a criação das santas casas da Misericórdia, segundo os moldes da estabelecida em Lisboa. O surgimento dessas coincidiu com uma nova política de ocupação de terras inaugurada pela Coroa portuguesa, promovendo a intervenção direta dos empreendedores europeus na esfera da produção, conforme a legislação das sesmarias e o estabelecimento de capitães-donatários, todos fidalgos da pequena nobreza, segundo a prática feudal lusa. Em 1548, a Coroa portuguesa resolveu intervir mais diretamente na questão do povoamento do território brasileiro, nomeando como primeiro governador-geral, Tomé de Souza, fidalgo e rico aventureiro da carreira das Índias. Esse estabeleceu-se na Bahia, fundando a cidade de São Salvador, capital do Brasil colonial até 1763. O governo de Tomé de Sousa (1549-1553) foi sucedido por outras quatro administrações gerais até a União Ibérica, em 1580, quando o reino de Portugal se uniu ao de Espanha. A crise do Império do Oriente, onde os portugueses estavam sendo gradativamente substituídos por outras nações, as pressões da burguesia mercantil lusitana para ter cada vez mais acesso ao mercado espanhol na América, a profunda crise nacional que Portugal atravessava com a morte do rei Dom Sebastião, além das profundas ligações entre as duas nobrezas, concretizadas nos laços matrimoniais, foram elementos determinantes para a aceitação de Felipe II da Espanha como rei também de Portugal.
O domínio espanhol sobre o Brasil foi importante na formação de várias das nossas instituições, entre elas as santas casas, que se disseminaram ao longo dos séculos pelas principais cidades e vilas, com fins de dotar a colônia de estabelecimentos para a assistência hospitalar. Ou seja, visando entre outras obras piedosas e de caridade, “curar os enfermos”.
O historiador Russell-Wood (1981), em estudo relativo à Santa Casa da Misericórdia da Bahia, observou sobre a dificuldade de precisar a data de sua fundação, devido a falta de documentação suficiente. Segundo Antônio Joaquim Damazio, que no século XIX reconstituiu a história da Misericórdia na Bahia, a fundação da instituição teria ocorrido entre a chegada do primeiro governador-geral Tomé de Souza, em 1549, e a morte do terceiro, Mem de Sá, em 1572. A partir do descobrimento de documentos antigos, os historiadores do século XX acabaram por reduzir esse período, apoiando-se em registros datados de 1549 que já faziam referência a um hospital. Russell-Wood questionou essa identificação entre hospital e Misericórdia, que foi utilizada por Pedro Calmon, Carlos Ott, Ernesto de Souza Campos, entre outros autores. Considerou que, embora houvesse indícios da existência da Irmandade da Misericórdia já em 1549, o Hospital pertencente à Misericórdia da Bahia, surgiria possivelmente anos mais tarde, durante o governo de Mem de Sá (1558-1572), um de seus provedores e benfeitores. Portanto, o registro mais antigo que se tem da instituição é de agosto de 1552, quando o jesuíta Manoel da Nóbrega, que viera com Tomé de Sousa, referiu-se à dificuldade de se manter um orfanato, “ ... da casa, a qual eu dava à Misericórdia desta cidade, e que cuidassem dos meninos, o que nem eles, nem ninguém quiseram aceitar” (Apud RUSSELL-WOOD, 1981, p. 63).
Desde 1572, a metrópole portuguesa resolvera dividir a colônia em dois governos distintos: o do Norte, com sede na Bahia, e o do Sul, com sede no Rio de Janeiro. Embora tal divisão tenha sido abolida poucos anos depois (1577), a capital Salvador desde aí passou a dividir com o Rio de Janeiro a importância como centro político e econômico da colônia (CARVALHO, 1988).
A história inicial da Santa Casa da Misericórdia da Bahia é de difícil reconstituição. As referências sobre a primeira década de seu funcionamento são bastante esparsas. Somente na década seguinte é que a confraria adquiriu importância social na Bahia, tendo o governador Mem de Sá, como seu provedor e benfeitor, promovido melhoramentos significativos no hospital que esta época já pertencia à Misericórdia, e construindo a primeira igreja da Misericórdia.
Durante o período da União Ibérica (1580-1640), o rei Felipe III de Espanha e II de Portugal, através de decreto real datado de 23 de setembro de 1622, concedera à Misericórdia da Bahia os mesmos privilégios da sua congênere de Lisboa. A confirmação desses privilégios, entre os quais a isenção de impostos, a utilização gratuita de selos e a não obrigação de prestação de serviços, passou por um longo processo judiciário, concretizando-se apenas em 16 de fevereiro de 1755. Ainda no período da União Ibérica, por ocasião da ocupação holandesa na Bahia (1624-1625), as instalações da Irmandade foram usadas como depósitos de pólvora e oficinas, e seu hospital foi ocupado por físicos, cirurgiões e boticários batavos que ali internaram os soldados feridos. Derrotados, os holandeses queimaram o arquivo da Irmandade, dificultando o levantamento histórico sobre a instituição.
Após a restauração, o Provedor da Misericórdia, Francisco de Moura Rolim, estimulou as admissões de irmãos e logo em 1629 a instituição teve de dispensar candidatos em potencial por não haver mais vagas em seus quadros. Não obstante os registros de suas propriedades terem sido perdidos durante a ocupação, o escrivão Gonçalo Pinto de Freitas, em 1652, tomou testemunho com os escrivães anteriores e levantou o seu patrimônio que consistia em 26 propriedades nos arredores da Misericórdia, cinco oficinas e um açougue. Além disso, havia um grupo de lojas e casas alugadas.
Durante período que sucedeu a invasão holandesa, a Irmandade da Misericórdia baiana recebeu vultosas doações dos seus próprios irmãos com o objetivo principal de renovar o hospital e construir uma nova igreja. Essas reformas tinham como objetivo “demonstrar à população baiana o duplo propósito da Misericórdia, como expoente de filantropia social e como congregação de fiéis” (RUSSELL-WOOD, 1981, p. 74).
Entre 1690 e 1750, a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, assim como todas as Misericórdias do Império português, atravessaram uma crise que, segundo Russell-Wood (1981), era explicada pela ameaça que o Império luso vinha sofrendo na Ásia através de ataques holandeses desde 1600. Em 1755, a Santa Casa baiana ainda se encontrava em precárias condições devido à sua má administração e, não raro, solicitava intervenção real através do Conselho Ultramarino, evitando contrair dívidas, fazer despesas e empenhando-se em cobrar dívidas pendentes.
A importância da Misericórdia da Bahia, entre as outras filiais brasileiras da Irmandade, era notória até pelo menos 1763, quando Salvador deixou de ser a capital da colônia com a transferência da sede do governo para a cidade do Rio de Janeiro. Mesmo depois desta data, junto com a Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, permaneceu como uma exceção entre suas congêneres, pois não chegou a fechar em nenhuma ocasião dada a grande quantidade de legados que recebeu.
Todas as Santas Casas eram regidas pela de Lisboa e com os mesmos propósitos desta. A Irmandade da Misericórdia de Lisboa, por sua vez, teve seu primeiro Compromisso impresso em 1516, provavelmente já reformado do original de 29 de setembro de 1498 (data da aprovação do alvará). Este “Compromisso”, dividia-se em 19 capítulos e referia-se inicialmente às 14 obras de misericórdia, sendo sete espirituais: “ensinar os ignorantes, dar bom conselho, punir os transgressores com compreensão, consolar os infelizes, perdoar as injúrias recebidas, suportar as deficiências do próximo, orar a Deus pelos vivos e pelos mortos”; e sete corporais: “resgatar cativos e visitar prisioneiros, tratar os doentes, vestir os nus, alimentar os famintos, dar de beber aos sedentos, abrigar os viajantes e os pobres e sepultar os mortos” (Apud ACADEMIA..., 1994, p. 45-46). Essas obras, a hierarquia entre os irmãos, o modo de enterrar os irmãos, além de outras incumbências, deveriam ser cumpridas por seus membros.
Somente em 1618 o “Compromisso” da Misericórdia de Lisboa passou por sua primeira reforma substancial, assumindo um formato que se manteve praticamente inalterado até o século XIX. Esse “Compromisso” de 1618 ganhou mais 22 capítulos, trazendo uma descrição detalhada de como deveriam ser as eleições, as funções e habilidades específicas exigidas a cada um dos integrantes da mesa, além de aumentar a quantidade de irmãos da confraria. As rígidas exigências para a admissão na instituição foram mantidas:
“1 - ser puro de sangue a pelo menos duas gerações, o que equivale dizer: não ter sangue de negro, mouro ou judeu. Tal exigência também recaía sobre a mulher do candidato [esta regra foi abolida no século XIX]; 2 - ser livre de toda infâmia de fato e de direito; 3 - ter idade conveniente: pelo menos 25 anos no caso de ser solteiro; 4 - não servir a casa por salário; 5 - ser isento
de trabalhar com suas próprias mãos: em caso de ser ‘oficial mecânico' ser dono de sua tenda; 6 - ser de bom entendimento e saber: que saiba ler e escrever; 7 - ter tenda suficiente para acudir ao serviço da irmandade quando necessário e para não ser suspeito de aproveitar do dinheiro da instituição em benefício próprio”. (Apud MELO, 1997)
No dia 31 de maio de 1896, a Mesa e a Junta da Santa Casa da Misericórdia da Bahia aprovaram um novo “Compromisso” no lugar do que fora estabelecido em 1618, simplificando seus capítulos, que de 40 passaram a 11. O novo documento estabeleceu algumas modificações na própria eleição da Mesa e da Junta, que passaram a ter mandato de dois anos; vigilância mais rigorosa das finanças, formando-se uma comissão de três irmãos responsáveis pela contabilidade da confraria; e criação de novas funções para os cargos de mordomia - “mordomo das locações” que cuidava dos bens imóveis, e “mordomo das obras” que ficaria responsável pela inspeção, conservação e construção de imóveis de propriedade da Irmandade.
Provedores e Benfeitores
O Compromisso da Misericórdia estabelecia que os provedores fossem “homens de autoridade, prudência, virtude, reputação e idade”, não podendo ter menos de quarenta anos. O cargo de provedor era, em geral, ocupado por políticos influentes, nobres titulares ou ricos comerciantes, tradição que se manteve ao longo dos séculos. Sendo assim, era comum no seu início os governadores-gerais acumularem este cargo com o de provedores. Exemplares neste sentido foram as gestões de Mem de Sá, de Luís de Sousa (1617-1621), de Diogo Luís de Oliveira (1632-1635), e de João Rodrigues de Vasconcellos e Sousa (Conde de Castelo Melhor – 1650-1651). Segundo Lycurgo de Castro Santos Filho (1991), somente a partir do século XIX, em situações excepcionais, alguns médicos e/ou cirurgiões assumiram os cargos de provedor e mordomo das Santas Casas. No caso da Bahia, o cirurgião José Soares de Castro chegou a ser eleito provedor.
Por outro lado, os irmãos aceitos nos quadros da Santa Casa, segundo previa seu “Compromisso”, deviam ser pessoas de classe social elevada. Nos tempos coloniais eram escolhidos dentre os membros da aristocracia rural de forte influência na política local e nacional; e depois, entre membros da alta burguesia formada por profissionais liberais, funcionários públicos, eclesiásticos, inquisidores, oficiais militares e diplomados em universidades. Havia também uma outra categoria de irmãos ainda “menor”, a dos profissionais que exerciam artes mecânicas (ourives e artesãos em geral).
Grande parte da renda da Misericórdia provinha de legados diretos ou na forma de propriedades. Entre os anos de 1600 e 1750, estes donativos tiveram como destino o hospital, os enjeitados, os presos, a Casa de Retiro, dotes ou almas. Dentre os seus fundadores e benfeitores destacaram-se Mem de Sá que deixou-lhe um terço de seus pertences; Gabriel Soares de Sousa, autor da famosa obra “Tratado descritivo do Brasil em 1587”, também deixou-lhe elevada quantia; e João de Mattos Aguiar, outro de seus provedores, que doou toda a sua fortuna em 1700, o que possibilitou a inauguração do Recolhimento do Santo Nome de Jesus em 1716.
Os problemas decorrentes das enormes dívidas feitas pelos irmãos quase levaram a Santa Casa da Bahia à falência na primeira metade do século XVIII. Como não era permitido ao provedor da instituição estar endividado, muitos irmãos chegaram até mesmo a contrair pequenas dívidas para não serem eleitos para o cargo, isentando-se da responsabilidade de reerguer a Irmandade.
Aspectos Sanitários da Bahia Colonial
Durante o período colonial, a Bahia foi acometida por várias doenças típicas do clima tropical como lepra, malária e febre amarela. Esta última ficou conhecida através da epidemia de 1686, que veio de Pernambuco. Outras doenças “climáticas” chegaram a se transformar em surtos epidêmicos em razão da enorme variação de intensidade e frequência das chuvas entre o inverno e o verão, aliadas à falta de higiene e saneamento da cidade. As chuvas fortes de verão eram bastante propícias à disseminação de infecções nos pulmões e demais órgãos do aparelho respiratório, que, mal tratados, acabavam se transformando em tuberculoses, febres reumáticas e sezões.
Tais doenças se proliferavam com maior facilidade e rapidez entre as classes mais pobres e mal nutridas, todavia os hábitos alimentares de maneira geral na Bahia colonial eram bastantes inadequados. Os proprietários de fazendas sofriam constantemente de doenças do aparelho digestivo devido aos fortes temperos como azeite de dendê e pimenta, e à falta de ingestão de alimentos frescos.
Além dessas doenças, havia outras que eram trazidas pelos escravos, marinheiros e colonizadores em geral, como a varíola, a sífilis e o escorbuto. Russell-Wood (1981) sinalizou dentre os fatores que colaboraram para a degradação das já precárias condições de saúde de Salvador, para a questão das três raças, que vindas de três continentes diferentes, participaram da miscigenação do povo brasileiro. Isto tornava a Bahia um terreno fértil para o surgimento de várias doenças porque cada região e cada continente possuíam uma gama própria de doenças que, no contato entre os indivíduos, foram fatais para aqueles povos, pelo menos até que se descobrisse a cura dos males. Diante de tal situação, a população indígena foi prejudicada e reduzida significativamente pelo contato com as doenças trazidas pelos colonos brancos (tuberculose, varíola etc.), enquanto o europeu sofreu com doenças tipicamente tropicais (malária, mal de Chagas, febre amarela). O africano teria sido o menos afetado por já ter tido contato com as doenças transmitidas pelos europeus, através de suas expedições pela costa ocidental da África. Na verdade, as condições sociais em que viviam os africanos escravizados eram o principal fator da sua alta taxa de mortalidade.
Outra questão levantada por Russell-Wood (1981), foi a dos problemas de saneamento nos trópicos. Apesar da região da Bahia ser bastante saudável, em virtude do clima sempre estável e homogêneo, o descaso do Conselho Municipal e da Coroa portuguesa acabou tornando impróprias suas condições sanitárias:
“A Bahia não era apenas o porto terminal do tráfico de escravos, mas também um ponto de escala dos navios de guerra que iam para a Índia. Os decretos reais relativos à higiene e à dieta nos navios negreiros e nos barcos de guerra não eram implementados. A Bahia era invadida por escravos, soldados e marinheiros doentes cada vez que um desses navios chegava ao porto.” (p. 207).
O Hospital da Misericórdia, devido à precariedade de suas instalações e falta de profissionais, não conseguia suprir as necessidades de seus doentes. Os medicamentos dados aos pacientes para cuidar dessas diversas enfermidades eram os mais elementares, sendo os purgativos campeões em pedidos recebidos pela farmácia da Misericórdia - purgas de baratas, purgas de antimônio, conservas purgativas e pílulas purgativas.
O sistema escravista que sustentou o Brasil ao longo dos períodos colonial e imperial também atingiria a Misericórdia da Bahia, que participava como compradora e proprietária de escravos sem, no entanto, desfrutar dos lucros do tráfico, como foi bastante comum na filial angolana da Irmandade. A Santa Casa tinha direito a 500 “cabeças” por ano e utilizava a sua força de trabalho nos serviços prestados à comunidade. Sua relação com os escravos era idêntica à de qualquer outro senhor: comprava-os, trocava-os, castigava-os, vendia-os em leilões públicos e recebia-os como herança.
Estrutura e funcionamento
Ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte, a assistência hospitalar continuou a ser realizada em grande parte pelas Santas Casas, fundadas e mantidas pelas Irmandades da Misericórdia. Sem contar com o auxílio governamental, as Santas Casas viviam da caridade pública, muito incentivada na época do reinado de Dom Pedro II (1840-1889), pelos títulos nobiliárquicos e as comendas que o Imperador concedia aos homens e mulheres que faziam generosos donativos às Irmandades da Misericórdia.
Os governos Imperial e Provincial, embora não subvencionassem as Misericórdias, concediam-lhes vantagens e benefícios como a isenção de impostos, taxas, selos e o privilégio da organização de loterias, cuja renda proveniente da venda de bilhetes era aplicada no custeio das Santas Casas.
A Santa Casa da Misericórdia da Bahia e a Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro destacaram-se das demais em relação ao seu patrimônio, resultante de doações e legados, além de bens imóveis e apólices da dívida pública. Sendo assim, nestas instituições alguns profissionais recebiam modestos vencimentos a partir do século XX. Todavia, o mais comum era que todos os médicos das localidades das diversas Casas se revezassem no atendimento aos pacientes sem receber qualquer remuneração. A prestação de assistência médico-cirúrgica, no entanto, era gratuita.
O setor médico cirúrgico ficava a cargo dos médicos, enquanto a administração era da responsabilidade de leigos, ou seja, dos diretores da Irmandade da Misericórdia, provedores e mordomos. Estes contratavam as Irmãs de caridade, religiosas católicas das Ordens de São José e de São Vicente de Paula, que se incumbiam da direção e dos serviços de todas as instituições mantidas pela Irmandade. As irmãs eram responsáveis pela assistência imediata aos doentes e só não desempenhavam as funções de quarteiras e serventes, entregues a escravos e depois assalariados.
A filantropia na Misericórdia da Bahia era feita na forma da reabilitação social ou ajuda imediata e direta em espécie. A filial baiana da Irmandade não teve rivais nesse sentido durante o período colonial, mantendo um hospital para enfermos, um recolhimento para mulheres e uma casa de expostos. Ademais, os irmãos visitavam periodicamente as prisões fornecendo ajuda aos condenados, conforme as condições financeiras da confraria, distribuindo esmolas aos necessitados e dotes às moças para assegurar-lhes a honra e casamento digno. Segundo Russell-Wood (1981), a Misericórdia da Bahia teria desempenhado valioso papel na promoção da política nacional de casamentos através da concessão de dotes, prática comum ao longo dos primeiros anos da expansão ultramarina portuguesa. O incentivo à instituição do casamento justificava-se pelo fato da Metrópole não contar com população suficiente para manter o poderio militar das regiões conquistadas.
Pela posição privilegiada que a Misericórdia ocupou, em relação a outras irmandades no Império português, foi a confraria que mais tomou para si a responsabilidade dos serviços médicos e hospitalares, destacando-se na manutenção de hospitais públicos nas cidades e vilas do Brasil.
A partir de 1822, com a independência do Brasil do Reino de Portugal, a Misericórdia da Bahia passou a ter outras responsabilidades e serviços sociais que mantinha com seus próprios recursos, administrando instituições como o Hospício de São João de Deus (para doentes mentais), um cemitério, um hospital para leprosos e um asilo de mendigos no lugar da câmara municipal ou do governo provincial.
O estabelecimento de um asilo de loucos foi aprovado pela Assembléia Provincial em 1864, tendo sido inaugurado dez anos mais tarde no solar Boa Vista com o nome de Hospício de São João de Deus. O Cemitério e o Hospital de Lázaros foram inaugurados em 1787 pelo governador Rodrigo José de Menezes. Em 1850, o cemitério foi oficialmente declarado público e em 1895 a administração do hospital de doentes mentais passou à Misericórdia.
Além de seus objetivos assistencialistas, a Santa Casa da Bahia como a maioria das Santas Casas no Brasil, firmou-se também ao longo dos séculos como espaço de exercício e ensino da medicina. Por ocasião da primeira reforma do ensino médico baiano, em 1816, a Santa Casa, cujo provedor era o Tenente-coronel Antônio da Silva Paranhos, passou a ceder parte de suas dependências para o funcionamento da então Academia Médico-Cirúrgica da Bahia, posteriormente Faculdade de Medicina da Bahia. Nesta época, o cirurgião-examinado pelo Hospital Real de São José, de Lisboa, e lente de anatomia e operações cirúrgicas da referida Academia, José Soares de Castro, tornou-se cirurgião-chefe da Santa Casa (SANTOS FILHO, 1991). A partir de 1833, suas enfermarias foram ocupadas para as lições de clínica da faculdade. Com a falta de hospitais próprios, a reforma de 1854, aprovada pelo decreto nº 1.387 de 28/04/1854, estabelecia que as diretorias das instituições de ensino entrassem em entendimento com as Santas Casas com vistas à utilização de suas enfermarias e outras dependências para trabalhos de dissecação e autópsias.
Hospital da Santa Casa da Misericórdia da Bahia
A construção do Hospital foi iniciada possivelmente por Tomé de Souza, que em 1549 veio para a Bahia como 1° Governador-geral e fundou a cidade de Salvador, primeira capital do Brasil (OTT, 1960; RUSSELL-WOOD, 1981). Nos tempos coloniais foi o único nosocômio geral da Bahia e até o século XVI era conhecido como Hospital de Nossa Senhora das Candeias ou Hospital da Cidade de Salvador. Entre 1690 e 1691, foi demolido e construído outro em seu lugar, que recebeu o nome de Hospital São Cristóvão ou da Caridade. Naquela época, era composto de duas enfermarias: a das chagas e a das febres. Nos primeiros anos do século XVIII suas dependências foram ampliadas, ganhando uma cisterna e um novo claustro (1702); uma grande farmácia que reunia todas as pequenas farmácias de cada enfermaria (1704); um asilo de loucos; e uma enfermaria feminina (1706). A atuação de sua farmácia sobressaía, pois, além de atender aos pacientes internos, era um dos poucos estabelecimentos na Bahia colonial que vendia remédios à população em geral.
O novo hospital ficava situado num terreno estreito entre a Rua Direita e a beira de um barranco, numa posição desprotegida, sendo pequeno, pouco arejado e faltando material básico para o atendimento aos doentes, como roupas de cama, colchões, etc. A única vantagem que a sua localização apresentava era a proximidade com a sede administrativa da Irmandade.
Atendia a uma população urbana que aumentou de 1.000 colonos, em 1549, para 130 mil residentes em 1755. Nesta época, a prioridade da Irmandade era manter a sua igreja e num segundo lugar bem distante, o hospital. Segundo Russell-Wood:
“um funeral bem organizado, ou uma missa brilhante traziam mais irmãos novos e mais legados à irmandade do que poderiam fazer o tratamento médico de todos os mendigos esfarrapados e escravos famintos do Recôncavo inteiro. A Misericórdia agradava à sociedade de seu tempo.” (1981, p. 214)
A Misericórdia, como administradora do único hospital da Bahia, mantinha-o com recursos próprios. Os empregados do nosocômio eram nomeados pelo corpo de guardiães e as diversas Mesas se revezavam na vaidade de preservar tal monopólio, apesar da insuficiência de recursos. Assim, a Irmandade se colocou contrária às tentativas de fundação de novos hospitais pelas ordens rivais. Os principais casos em que reinou a obstinada negativa da Misericórdia foram: em 1720, quando o frade Bernardo da Conceição teve a sua petição para a construção de um nosocômio negada por influência da irmandade; em 1736, quando a confraria do Corpo Santo tentou fazer um acordo com a Misericórdia no intuito de estabelecer um hospital, mas também não obteve sucesso; e em 1750, quando o vice-rei Conde de Atouguia (D. Luís Pedro Peregrino de Carvalho Meneses de Ataíde, 10º Conde de Atouguia, 1749-1755, 6º vice-rei do Brasil) recomendou em vão ao rei o estabelecimento de um hospital militar, devido às altas taxas cobradas pela Irmandade pelo precário tratamento dispensado aos soldados a serviço da Coroa. Em contrapartida, a Misericórdia não se opôs à construção de hospitais de outras ordens religiosas como a dos jesuítas e a dos franciscanos, desde que esses estabelecimentos funcionassem exclusivamente para o atendimento dos irmãos das respectivas confrarias.
Como na Irmandade carioca, a Misericórdia da Bahia estava a serviço da Coroa e, portanto, recebia militares enfermos e feridos em seu hospital em troca de favores régios. Somente em 1751, a Irmandade baiana solicitou ao rei o pagamento de uma diária para cada soldado que fosse tratado nas dependências de seu hospital, imitando o gesto da Misericórdia do Rio de Janeiro. Todavia, as dificuldades continuaram mesmo depois da criação do hospital militar, em 1776, pois a Misericórdia, tornando-se responsável por sua administração, continuou lidando com os atrasos no pagamento ou o não pagamento. Em 1783, a entidade abriu mão desta gerência.
Os pacientes tratados no hospital da Misericórdia, a julgar pelo seu “Compromisso” e pelo fato de que qualquer cidadão que pudesse pagar um médico recebia os cuidados em sua própria residência, eram geralmente provenientes dos setores mais pobres pertencentes a quatro grupos: os negros e os brancos pobres; os estrangeiros; os soldados da guarnição; e os soldados e marinheiros dos navios de guerra e outros barcos da Coroa. Ao contrário dos soldados que trabalhavam na própria praça, os militares e marinheiros em trânsito recebiam todos os cuidados possíveis da equipe do hospital, pois a confraria recebia o pagamento por sua estadia de acordo com o efetivo de cada navio que aportava na cidade, independentemente da quantidade de doentes.
Em relação à equipe médica remunerada que trabalhava no hospital da Misericórdia, até o final do século XVII um físico e um cirurgião foram suficientes para atender aos pacientes, mas a partir do século seguinte a equipe foi ampliada com mais um médico e um cirurgião que deviam estar sempre à disposição do hospital da Irmandade. Mais tarde, contudo, foi preciso abrir mão de pelo menos um cirurgião em razão dos desacordos entre a equipe quanto aos diagnósticos e deveres de cada um, o que acabava por prejudicar os enfermos. Quanto à formação e experiência desses médicos e cirurgiões, geralmente os que tivessem estudado na Universidade de Coimbra e fossem cristãos-velhos, tinham preferência da Irmandade na acirrada disputa para o cargo.
O resto da equipe era formado por barbeiros e parteiras. No caso da enfermagem, havia um enfermeiro-mor, dois enfermeiros e uma enfermeira. Esses, geralmente recrutados entre os carregadores de essas (estrado que se erguia numa igreja para nele se colocar o defunto enquanto se efetuavam as cerimônias fúnebres), eram na maioria analfabetos e por isso cometiam erros na medicação ministrada aos pacientes. Ademais, o hospital também mantinha um padre a serviço dos enfermos em tempo integral, o “padre da agonia”, que rezava missas nas enfermarias, ouvia confissões e ministrava os sacramentos aos moribundos.
Era difícil para a Irmandade manter funcionando seu hospital, não obstante as taxas diárias cobradas aos pacientes que podiam contribuir com seu próprio tratamento, mas que não teriam condições de pagar um médico em sua casa. O mesmo valor era cobrado aos senhores pelo tratamento de seus escravos, porém a dívida muitas vezes não era quitada. Outra importante fonte de renda da Misericórdia era a farmácia. Contudo, na segunda metade do século XVIII, devido ao grande número de farmacêuticos na Bahia, o mercado da Misericórdia neste ramo se enfraqueceu.
Conforme Russell-Wood (1981), a Misericórdia desempenhou um papel semiburocrático na vida pública ao ser a mantenedora do único hospital na Bahia colonial, já que esta função normalmente deveria caber à Coroa em Lisboa e à municipalidade baiana que não assumiram esta responsabilidade no período. Desta forma, a Coroa e as autoridades municipais reconheciam a importância da Misericórdia como prestadora de assistência social às comunidades. A Coroa acabaria por fornecer privilégios e verbas à Irmandade pelos cuidados que prestava aos “homens a serviço do rei”.
No século XIX a entidade passou por severas reformas em todas as suas obras de caridade. Rapidamente o hospital tornou-se insuficiente para atender minimamente seus enfermos, não só pela péssima localização, como pela falta de leitos, situação que acabou se agravando com o empréstimo de alguns cômodos para o ensino prático dos alunos da Academia Médico-Cirúrgica da Bahia, a partir de 1816. Por duas vezes a Mesa tentou transferir o hospital sem sucesso: a primeira, em 1814, para Tororó e a segunda, em 1827, para Nazaré. A urgência das circunstâncias fez com que, em 1833, os doentes da Misericórdia da Bahia fossem levados temporariamente para o antigo Colégio dos Jesuítas, onde funcionou um hospital militar desde a expulsão da Ordem, em 1760, até 1832. O novo Hospital de Santa Isabel, localizado no Largo de Nazaré, só ficaria pronto em 1893, com recursos provenientes de heranças e da concessão para manter loterias.
Segundo Joaquim dos Remedios Monteiro (1879), médico clínico em Salvador, eram médicos em exercício ou efetivos no Hospital da Santa Casa da Misericórdia em 1879: José Francisco da Silva Lima, José Luiz de Almeida Couto, Manuel Maria Pires Caldas, Antônio Januário de Faria, Augusto Freire Maia Bittencourt, José Affonso Paraíso de Moura, Antonio Monteiro de Carvalho e Luís Adriano Alves de Lima Gordilho (Barão de Itapoan). Havia uma enfermaria destinada à clínica cirúrgica e outra à clínica médica da Faculdade de Medicina da Bahia.
Presos
A Misericórdia baiana também recebeu privilégios para a assistência social aos presos por decreto real em 1622. Na Bahia colonial ocorriam os mais diversos tipos de crimes: assaltos a mão armada, roubos a igrejas e assassinatos entre bêbados. As penalidades eram duras, variando entre multas em dinheiro, marcação, amputação de uma das orelhas, chicote, prisão e, em último caso, exílio ou condenação à morte. A aplicação das penas também variava conforme a classe social e a raça: pessoas de posição social mais alta tinham o “privilégio” de serem decapitadas, enquanto os mais pobres eram enforcados; brancos nunca eram chicoteados, ao contrário dos negros cativos ou livres. Os mais ricos eram beneficiados nos tribunais – as famílias baianas mais tradicionais, não raro, tinham parentes no judiciário – e os mais pobres quase não tinham direito de defesa.
O papel da Misericórdia na assistência aos presos na Bahia foi de suma importância, pois uma vez enviados à prisão os criminosos não mais existiam aos olhos do governo. As condições da cadeia na Bahia eram tão precárias que o simples fato de ter que ir para lá equivalia a uma sentença de morte.
Apesar de não receber qualquer ajuda financeira ou material das fontes oficiais, a Misericórdia ocupava-se do bem-estar dos presos, contando apenas com a caridade. Uma das maiores doações feitas particularmente para esse fim foi a deixada por João Alves Fontes em 1702. Como não era possível auxiliar todos os presos, a Irmandade estipulava algumas regras para a escolha dos presidiários que deveriam receber ajuda. Estes deviam ser indigentes, não terem sido condenados por dívidas, quebra de promessa ou estarem esperando deportação, além de estarem presos ao menos por 30 dias.
A assistência material aos presos chegava também através da solidariedade de cidadãos baianos abastados que ofereciam refeições para os prisioneiros por ocasião de determinados dias santificados. A Misericórdia proporcionava ainda assistência médica e jurídica aos criminosos, além do alívio espiritual aos condenados à morte, enviando um padre para que o preso confessasse seus pecados e realizando uma missa na própria prisão. No dia da execução, a Irmandade fornecia um manto branco ao prisioneiro e anunciava o enforcamento para toda a cidade, acompanhando seus últimos passos até o cadafalso, ao mesmo tempo em que entoava preces. Havia uma tradição nessas ocasiões, de que se a corda utilizada para o enforcamento arrebentasse, a Misericórdia cobria o condenado com sua bandeira e suplicava ao rei que a pena fosse retirada, o que nem sempre era cumprido, tanto do lado régio, quanto da Irmandade, que, às vezes, providenciava para que a corda fosse previamente desfiada.
Enterros
Uma das tradições mais fortes da Misericórdia foi a dos sepultamentos, que era sua grande fonte de rendas. Em 1790, recebia 800 mil réis anuais pelo esquife dos pobres e o mesmo valor pelos escravos, nem sempre pagos pelo seu respectivo senhor. Os brancos de melhor condição eram enterrados nas igrejas.
O seu estatuto com relação aos rituais fúnebres definia o número de missas a serem celebradas pela alma do irmão falecido. Quando algum membro da Irmandade falecia, todos os irmãos eram convocados a comparecer à Igreja da Misericórdia e obrigados a rezar 14 Padre-Nossos e 14 Ave-Marias.
A Santa Casa da Misericórdia da Bahia não só se preocupava com o enterro dos membros da sua irmandade e seus familiares, mas determinava que esta fosse uma das principais obras constantes em seu Compromisso, sendo a única que tinha o monopólio dos serviços funerários em Portugal e em suas colônias, o que lhe garantia sua maior fonte de renda. Conforme a lei, aquele que desobedecesse ao privilégio da Misericórdia deveria ser excomungado e ainda pagaria uma multa. Isto não garantiu, porém, a ausência de acirrados conflitos entre a Misericórdia e outras irmandades na disputa do “monopólio da morte” que, de qualquer maneira, receberam autorização da Misericórdia para realizar rituais fúnebres por preços mais baixos.
Esta prática foi adotada tanto pela Santa Casa da Misericórdia da Bahia, como pela do Rio de Janeiro, e o máximo que as outras irmandades poderiam esperar da Mesa da Misericórdia era uma autorização para que pudessem utilizar “essas” (estrado onde se colocava o defunto enquanto se efetuavam as cerimônias fúnebres). No caso da Bahia, as únicas que foram contempladas com a autorização no período colonial foram a Irmandade de São Pedro dos Clérigos, a Irmandade de Santa Cruz e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, as duas primeiras de brancos e a última de negros.
Tanto a Misericórdia quanto outras irmandades, como as Ordens Terceiras, cobravam uma quantia anual para cobrir as despesas com os enterros, mas obrigavam-se a realizá-lo mesmo no caso de empobrecimento de um irmão que não mais pudesse arcar com as anuidades.
O prestígio social ligado à realização dos funerais era muito apreciado pelas irmandades baianas. As mais importantes na sociedade colonial dos séculos XVII e XVIII eram a Misericórdia e as Ordens Terceiras, as quais freqüentemente possuíam membros em comum, e era quando um desses falecia que ocorriam os desentendimentos entre elas, principalmente com a Ordem Terceira de São Francisco. Não obstante os irmãos destas duas irmandades constantemente entrarem em conflito, o privilégio fora concedido à Misericórdia em 30 de junho de 1593 pelo Cardeal Arquiduque Alberto da Áustria – governador da Metrópole portuguesa durante o reinado de Felipe II de Espanha e II de Portugal – e dificilmente seria retirado.
A Santa Casa da Misericórdia era a única instituição da Bahia que oferecia serviços fúnebres às pessoas que não pertenciam a nenhuma irmandade e procurava cumprir esta função da maneira mais detalhista possível. Desde o mais rico proprietário rural até o escravo, havia determinações especiais e caixões diferenciados conforme a posição social. Os registros de sepultamentos realizados pela Misericórdia, entre 1690 e 1752, indicam um total de 7.865 brancos enterrados (não há dados referentes à população negra).
Como no Rio de Janeiro, na Bahia do século XIX houve uma forte campanha para que os sepultamentos deixassem de ser feitos nos arredores das igrejas e, em 1805, a Irmandade passou a utilizar como cemitério o Campo da Pólvora, originalmente destinado aos escravos.
Após duas décadas o cemitério não tinha a menor condição para receber novos cadáveres e a Assembléia Provincial outorgou o monopólio da construção de cemitérios a uma empreiteira privada por 30 anos. Em 23 de outubro de 1836, o novo cemitério em Campo Santo ficou pronto, porém as Ordens Terceiras e as outras irmandades que cobravam taxas pelos enterros se sentiram intimidadas e iniciaram uma violenta campanha contra a decisão das autoridades, incentivando a população a destruir o cemitério. A companhia exigiu indenização total pelas perdas sofridas e a Assembléia Provincial entregou a administração do Campo Santo à Misericórdia, que concordou em transferir os restos mortais das pessoas enterradas no Campo da Pólvora para o Campo Santo.
Fontes
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Ficha técnica
Pesquisa - Jacqueline Ribeiro Cabral.
Redação - Jacqueline Ribeiro Cabral; Verônica Pimenta Velloso.
Revisão – Francisco José Chagas Madureira.
Atualização – Maria Rachel Fróes da Fonseca, Ana Carolina de Azevedo Guedes.
Forma de citação
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DA BAHIA. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1970). Capturado em 25 nov.. 2024. Online. Disponível na internet https://dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/dicionario
Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1970)
Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz – (http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br)