Conferência Popular da Glória nº 139

De Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1970)
Revisão de 20h01min de 18 de dezembro de 2025 por Ana.guedes (discussão | contribs) (Criando um novo verbete.)
(dif) ← Edição anterior | Revisão atual (dif) | Versão posterior → (dif)
Ir para navegação Ir para pesquisar

Data: 22/08/1875

Orador: Manoel Francisco Correia

Título: Concurso dos cidadãos a bem do ensino     

Aviso, íntegra ou resumo: Íntegra

Texto na íntegra

“Um grave assunto, do maior interesse social e de progresso individual, preocupa-me sempre que subo a esta tribuna: a instrução popular. Não posso deixar de ter tal preocupação, lembrando-me do lastimável estado em que infelizmente se acha tão proveitoso ramo da administração pública.

A prosperidade das nações não está somente nos melhoramentos materiais. Não bastam estradas, canais, telégrafos, vapores, monumentos suntuosos, fábricas, estaleiros, oficinas. São sem dúvida apreciáveis elementos de civilização; trazem riqueza, conforto, aperfeiçoamento; dão impulso ao trabalho, movimento ao comércio, animação à indústria, facilitam a permuta dos produtos, o giro das transações e tornam aproveitáveis todas as fontes naturais de adquirir fortuna, muitas das quais jazem abandonadas em nosso país.

Mas a desmoralização pode caminhar ao lado, pervertendo os sentimentos, anarquizando as ideias, engendrando perturbações que mais tarde agitaram convulsivamente a sociedade com o perigo da decadência, senão da ruína.

Para que os benefícios da civilização perdurem e o progresso adquirido se radique e fortaleça, é indispensável curar também, cada vez com mais afinco, da instrução pública, que alarga o domínio do espírito, e dá aos esteios morais do edifício social a solidez sem a qual pode ser efêmero e ilusório o brilho das conquistas sobre a matéria.

Os melhoramentos materiais estimulam a aplicação da atividade pela compensação imediata. Às vezes é até conveniente obstar à invasão da febre de empresas para que os capitais não se desvairem em busca de lucros falazes.

Os melhoramentos morais existem sacrifícios: excluem, em regra, as tentações da ganância. Reclamam, por isso, mais assiduamente os cuidados dos que se interessam pela causa geral. Esses cuidados devem ser tanto mais eficazes, quanto mais aflitivo o mal que se pretende combater.

E bem pouco risonho é o aspecto da instrução primária entre nós. Causas históricas concorrem para isso.

No tempo colonial à metrópole nunca se mostrou solicita em difundir o ensino no vastíssimo território que a fortuna, mais que os esforços e a previdência do governo ou a sabedoria dos estadistas, reuniu sob a sua jurisdição.

A metrópole não criou no Brasil estabelecimento de ensino secundário e menos de ensino superior. Existiam, destacadas, algumas cadeiras de latim, filosofia e retórica, criadas por ato do governo. Existiam também alguns seminários, fundados pela beneficência particular e pelo zelo de bispos desejosos de preparar sacerdotes para o melhor desempenho de suas sagradas funções. Tais eram os de Nossa Senhora da Lapa, de S. José, de S. Joaquim, no Rio de Janeiro; da Lapa, em Campos; de Itú, em Minas; de Órfãos e Episcopal, na Bahia; de Olinda, em Pernambuco; e o do Pará.

Não careço demorar0me em demonstrar a insuficiência dos meios para o grandioso fim. Mas fizeram os espanhóis em suas colônias.

Não trouxemos, portanto, da vida colonial estímulos para dar vigoroso impulso ao desenvolvimento da instrução.

Se tal estado de coisas era compatível com o sistema de governo adotado, e com as limitadas funções públicas que os filhos do Brasil tinham de desempenhar, tornou-se absolutamente insuficiente, depois da independência, em presença da nova forma do governo que assenta na liberdade. D’essa forma de governo, que a ignorância falseia, só aufere todas as vantagens o povo instruído. Desde que os cidadãos ativos têm de intervir na direção dos negócios, cumpre que se achem devidamente habilitados para essa gloriosa missão. Os poderes arbitrários ou usurpadores, diz um ilustre escritor, não duram senão pela fraqueza da razão publica, seu único apoio e seu único pretexto.

Vejamos até que ponto podemos confiar na eficácia da intervenção dos cidadãos a bem dos interesses públicos, atendendo à situação presente da instrução entre nós. Talvez que, estudando este ponto, descubramos a verdadeira causa da lastimável indiferença da opinião em certos casos.

Qual é atualmente o estado intelectual do país?

A população do Império, excluída a de vinte e sete paróquias em que não se fez o recenseamento, eleva-se a 9.930,478 habitantes. D’estes, somente receberão instrução 1.564,481.

Feita a dedução dos menores e dos escravos, ainda assim é desoladora a proporção entre os que sabem e os que não sabem ler. Da população livre maior de dezesseis anos, 5.460,913 habitantes, estão no primeiro caso 1.563,078. Jazem em completa ignorância 3.897,835. Dos escravos sabem ler 1.403.

Na população escolar de 6 a 15 anos, causa profunda magoa a diferença que há entre os que frequentam e os que não frequentam a escola. De 1.902,454 somente aprendem a ler 320.749. O número dos que entre nós procuram a instrução não é muito superior ao dos professores nos Estados Unidos?

Eis-aí, senhores, um quadro desalentador. Estes algarismos clamam pelo pronto emprego de sacrifícios correspondentes à gravidade do mal. O que devemos esperar da continuação das coisas no mesmo pé?

Não temos senão quase exclusivamente o ensino oficial, além do limitado ensino particular, de que só aproveitam, aqui como em toda a parte, aqueles que podem pagar aos professores; e não é este o que deve inspirar cuidados.

A questão é colocar escolas em todos os lugares em que haja certo número de analfabetos que possam concorrer a elas. Isto traz despesas, e os recursos provenientes dos impostos não bastam.

Às assembleias provinciais entregou o ato adicional o encargo de legislar sobre a instrução pública e estabelecimentos próprios para promovê-la; mas não é essa a única obrigação que lhes cabe; a outras, também imperiosas, tem elas de atender.

Vejamos os seus recursos e a parte que destinam á instrução.

Não trato dos cofres gerais, porque a despesa que fazem com a instrução primária tem sido até agora restrita ao municipio da Corte.

As leis de orçamento ultimamente votadas pelas assembleias provinciais fornecem os seguintes dados acerca da receita provável de cada província e da despesa que faz com a instrução:

Receita orçada Despesa com a instrução
Amazonas 575:433#520 66:660#000
Pará 1,533:670#000 346:350#000
Maranhão 831:290#000 125:102#000
Piauí 346:526#300 40:456#000
Ceará 811:929#655 183:046#666
Rio Grande do Norte 318:682#026 96:350#000
Paraíba 777:232#581 164:303#333
Pernambuco 2,512:449#516 478:904#166
Alagoas 773:056#051 137:300#000
Sergipe 679:735#872 119:060#000
Bahia 2,172:433#000 363,500#000
Espírito Santo 300:000#000 82:000#000
Rio de Janeiro 4,221:505#000 874:862#000
São Paulo 2,706:772#665 874:862#000
Paraná 727:985#965 64:720#000
Santa Catarina 311:492#953 76:726#000
Rio Grande do Sul 1,730:648#000 275:260#000
Minas Gerais 1,651:640#000 601:600#000
Goiás 147:787#276 51:550#000
Mato Grosso 167:000#000 48:510#000

Assim, pois, a receita orçada para as vinte províncias do Império não passa de 23,315:269#910; e a despesa com a instrução eleva-se a 4,594:233#495, absorvendo quase a quinta parte da totalidade da renda. Pode ser aumentada essa despesa?

Direi de passagem, porque a observação vem a proposito, que a questão da receita e despesa provincial é uma das mais sérias que atualmente se agitam em nosso regime administrativo. As províncias endividam-se, e seu estado financeiro é verdadeiramente embaraçoso. A necessidade de nova distribuição dos serviços que devem ficar a cargo do governo geral e dos governos provinciais, e dos meios de acudir a eles, vai tomando corpo, e talvez não se possa dispensar nova organização da administração provincial. Mas estes assuntos, de alto alcance para a direção da sociedade, reclamam o mais refletivo exame e prolongado estudo. Limitemo-nos por agora a reconhecer que, com os encargos que já pesam sobre os cofres provinciais, não se pode esperar, nos tempos mais próximos, sensível aumento na despesa que fazem as províncias com a instrução pública.

O que cumpre então fazer para alterar profundamente uma situação que não pode trazer crédito para o Brasil?

Que exemplo, digno de imitação, nos fornecem outros povos cultos, empenhados em debelar o flagelo da ignorância, que além do mais, seca uma das fontes dos mais puros gozos do homem, a leitura dos bons livros? O do interesse dos cidadãos pela propagação da instrução. Convencidos de que pagam assim tributo, que não devem recusar a pátria, não poupam sacrifícios de dinheiro para derramá-la abundantemente. Formam-se associações, que trabalham dominadas por louvável emulação. Nos Estados Unidos, depois da última guerra civil, o movimento n’este sentido foi ainda mais saliente. Reconhece-se que, como diz Laveleye, o dinheiro empregado em edificar escolas é poupado em construir prisões.

Pois bem! Cumpre que entre nós associações particulares operem virilmente a transformação que os algarismos estão exigindo em matéria de educação popular, cujo atraso não pode deixar de ferir o sentimento e pundonor nacional.

É chegado o momento de instar para que se manifeste em toda parte a iniciativa do cidadão em matéria de ensino.

Não quer isto dizer que se exclua a interferência do poder público. Para proceder com inteira justiça o Estado que pune deve ensinar, demonstrado, como está, que a ignorância paga avultada contribuição à criminalidade. Guizot notava que jamais a indústria particular operou, n’um grande país, mudança profunda, melhoramento considerável no sistema da educação nacional. Mas o concurso do cidadão é auxílio poderoso, e no Brasil imprescindível para melhoramento da condição intelectual das classes inferiores. Esse auxílio lhes é devido; trata-se dos desfavorecidos da fortuna, dessa deusa caprichosa que não alarga o círculo d’aqueles para quem sorri.

A classe mais bem fadada repousa tranquilamente se deixa-se dominar por sentimentos de benevolência para com aqueles que necessitam, procurando adoçar-lhes a sorte. O amor da pobreza que não blasfema é cheio de bençãos; e os benefícios feitos aqueles que mer4ecem deleitam a consciência. Demais, para que o progresso seja duradouro, todas as classes sociais devem colher os frutos da civilização.

N’estes sentimentos inspiram-se os patriotas ingleses. Para demonstrá-lo, repetirei as palavras proferidas por lord John Russell na câmara dos comuns em 1844:

“Cumpre reconhecer que, n’este país, o bem-estar das classes laboriosas não tem progredido da mesma forma que o das outras classes da nação. Quando comparamos a Inglaterra de hoje com a Inglaterra de ha um século, convencemo-nos de que o povo não tem auferido, pelo que respeita ao desenvolvimento da civilização e dos conhecimentos humanos, vantagens iguais às das outras partes do corpo social”.

Estas palavras contribuíram poderosamente para induzir o parlamento, como desejava o distinto estadista, a conceder auxílios mais eficazes para o melhoramento do ensino.

Com efeito, senhores, não nos devemos considerar arredados das questões de importância social só porque supomos que pessoalmente não nos tocam. O cidadão, que se julga estanho à causa publica, não pode razoavelmente queixar-se dos atos dos que com ela especulam se vierem a ocupar as posições eminentes pelo abandono em que forem deixadas.

No assunto que prende a nossa atenção, devemos, para conseguir o mesmo profícuo resultado, proceder ao inverso da Inglaterra, onde até 1832 o ensino primário achava-se entregue aos esforços de beneficência e à influência exclusiva das diferentes seitas religiosas. D’ele encarregavam-se principalmente três grandes associações, a National Society, dos sectários da igreja do Estado, a British and foreign school society, sociedade britânica e estrangeira fundada pelos cultos dissidentes; e a sociedade católica.

Verificou-se n’aquela ilustre nação, sempre solícita em estudar pausadamente sua situação interna para arredar com prudência e em tempo oportuno as causas de atraso e perturbações, quanto era imperfeito o sistema de ensino que vigorava. Como de costume, precederam à deliberação estudos minuciosos por via de inquéritos. O primeiro, feito em 1803, patenteou a relação vexatória entre os que frequentavam e os que deixavam de ir à escola, 1 para 1.712. O de 1818 demonstrou que não havia progresso a assinalar em matéria de tanta ponderação. E ainda o de 1833 revelou que somente dez por cento das crianças na idade propria frequentavam as escolas!

Semelhante resultado não podia satisfazer aos estadistas britânicos; e causaria admiração a demora que houve em providenciar sobre tão grave assunto se o fato não tivesse a explicação histórica da necessidade de concentrar a nação os seus esforços na luta gigantesca que teve então de sustentar.

Logo que cessou esta necessidade, pediu-se energicamente o auxílio, a interferência do Estado a bem do ensino.

Compreendo, senhores a sofreguidão com que homens como Lord Brougham, Lord John Russell, sir John Packington, dedicaram-se a essa tarefa.

Depois da guerra contra o Paraguai, em que tivemos de empenhar-nos por força do sentimento da dignidade nacional, conhecemos todos que não devíamos perder tempo em continuar as medidas internas de que depende a marcha segura do Brasil no caminho da civilização. O supremo cuidado, durante aquela guerra memorável, era para que nada faltasse aos bravos defensores da pátria que longe d’ela pugnavam por seus direitos e sua honra. Os recursos que se podiam obter eram de preferência empregados na sustentação da gloriosa luta. O triunfo que coroou as nossas armas não tinha, porém, o poder de eliminar os efeitos do forçado retardamento no progresso interior. Cumpria-nos acelerar o passo para vencer a distância que a dura lei da necessidade nos impedira de percorrer. Por fortuna não foram inteiramente desatendidas as vozes que clamavam n’este sentido.

Na Inglaterra, que dispõe de outros meios, conseguiu-se mais, como era natural. O que se pretendia ali? A reunião de todos os esforços para que, em matéria de instrução, a Grã-Bretanha não estivesse abaixo da Alemanha, da Holanda, da Suíça, cujos recursos financeiros eram muito inferiores. O parlamento discutiu até 1832 diferentes bills regulando a intervenção do Estado no ensino. Votaram-se subsídios que a princípio, em 1833, de 20.000, elevam-se hoje a 1.000.000

Por carta régia de 10 de abril de 1839 constituiu-se a comissão de educação do conselho privado que centraliza a direção do serviço.

A liberdade tradicional foi respeitada quanto à fundação de escolas. As que dispensam o subsídio do Estado mantém-se livres. As que o aceitam ficam sujeitas á inspeção do agente da administração, que o conserva, retira ou aumenta, conforme o uso que d’ele fazem.

Quando se tratou da distribuição dos subsídios apareceram pretensões encontradas. A igreja anglicana reclamava o direito exclusivo da direção do ensino nacional; mas o governo compreendeu também na distribuição as seitas dissidentes.

Com as medidas adotadas, sem romper com o passado, antes de aproveitando e melhorando os elementos existentes, nova era, assinalada por benefícios reais, raiou para a instrução popular na Inglaterra.

Mas acreditais, senhores, que, à vista do concurso tão valioso do Estado, os cidadãos descansaram, julgando-se dispensados de continuar a contribuir para a obra meritória da regeneração intelectual? Não.

Deschamps assevera que, na Inglaterra, as contribuições voluntárias para esse fim elevam-se a 40.000,000 de francos; e Senior[1] afirma que os subsídios do Estado tendem a aumentar antes que a diminuir o concurso dos particulares.

Qual deve ser o nosso empenho? Conseguir o mesmo fim de reunir, a bem da difusão das luzes, os recursos que puderem vir do imposto, sem que se torne opressivo, e todos os que puder fornecer a liberalidade particular.

Na Inglaterra, onde não existia ensino oficial, pedia-se em nome do patriotismo o auxílio do Estado par que todas as forças se consagrassem com o nobre intuito de melhor profundamente o sistema da educação popular.

A nação acudiu pressurosa ao patriótico reclamo; e este fato é seguramente honroso para a Grã-Bretanha, já credora de respeito pelo seu aferro aos princípios da liberdade constitucional.

Entre nós, as circunstâncias são outros, e, para colher idêntico resultado, temos de erguer diverso brado. Sobre os poderes do Estado tem pesado quase exclusivamente o encargo de promover o adiamento moral da nação. O cidadão parece adormecido.

Deveremos por isso consentir que nos julguem incapazes dos ousados cometimentos que carecemos realizar para colocar nossa pátria ao nível de seus grandes destinos? Esqueceremos acaso que é assim que o caráter nacional se engrandece e excita a admiração universal?

O brado que precisamos fazer ouvir é para que a iniciativa particular traga eficazmente o seu concurso para o desenvolvimento da instrução no Brasil, sem a mira em outra recompensa que não seja a de haver desveladamente cumprido um dos mais urgentes deveres cívicos.

Eu solto esse brado, e só peço que ele encontre eco simpático no coração de meus compatriotas. Ilumine-os Deus para que possam mostrar por seus atos que são dignos da região abençoada que lhes coube em partilha na distribuição da terra pelos povos que compõem a humanidade!"


[1] Senior, Popular Education, pag.21 e seguintes.

Localização

- CARDOSO, José A. dos S. Conferências e outros trabalhos do Cons.Manoel Francisco Correia. Rio de Janeiro, Tip. Perseverança, 1875, p. 157-166.

- Conferências Populares, Rio de Janeiro, nº1, jan.,1876, p. 89-98. (íntegra). Capturado em 03 set. 2025. Online. Disponível na Internet: http://memoria.bn.gov.br/docreader/278556/805

Ficha técnica

- Pesquisa: Aline de Souza Araújo França, Ana Carolina de Azevedo Guedes, Mª Rachel Fróes da Fonseca, Yolanda Lopes de Melo da Silva.

- Revisão: Ana Carolina de Azevedo Guedes, Mª Rachel Fróes da Fonseca.

Forma de citação

Conferência Popular da Glória nº 139. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1970). Capturado em 23 dez.. 2025. Online. Disponível na internet https://dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/wiki_dicionario/index.php?curid=720

 


Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1970)
Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz – (http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br)