SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DO RIO DE JANEIRO
Denominações: Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (1582); Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro
Resumo: A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro foi fundada em meados do século XVI, em data incerta, na praia de Santa Luzia, atual rua de Santa Luzia, na cidade do Rio de Janeiro. Além de seus objetivos assistencialistas, firmou-se também ao longo dos séculos como espaço de exercício e ensino da medicina. A partir de 1813, a instituição passou a ceder parte de suas dependências para o funcionamento da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, depois Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Mesmo depois de 1918, quando a Faculdade ganhou sede própria, a Santa Casa continuaria acomodando seu instituto anatômico, biblioteca e diretório acadêmico até os anos de 1940.
Histórico
O nome Misericórdia era uma das antigas invocações da Virgem Maria, que foi utilizado entre 1240 e 1350 para nomear uma irmandade em Florença - Nossa Senhora da Misericórdia. Segundo alguns estudiosos, esse fato teria influenciado Portugal ao criar uma irmandade de mesmo nome. A bandeira de todas as Misericórdias, através de sua pintura, representava a igualdade com que a Mãe de Deus favorecia e recolhia todos debaixo do seu manto.
Formada por uma irmandade leiga, a Santa Casa da Misericórdia teve origem em Portugal no final do século XV. Sua fundação na historiografia existente costuma ser atribuída ao Frei Miguel de Contreras. Nascido na Espanha, o Frei radicou-se em Lisboa, onde teve o apoio da rainha Dona Leonor, viúva de Dom João II, rei de Portugal falecido em 1495. De origem nobre, Miguel de Contreras exerceu professorado em teologia e foi pregador, visitando frequentemente os palácios reais. Frei Miguel de Contreras organizou assim, seu primeiro hospital às portas de Santo Antônio da Sé, num casarão em ruínas, mantido graças às esmolas que levantava junto aos seus devotos.
Em 15 de agosto de 1498, foi fundada, então, a confraria da Misericórdia, sob a real proteção de Dona Leonor, que mandou edificar o hospital de Caldas da Rainha e com a colaboração de seu irmão Dom Manuel I, então rei de Portugal, deu prosseguimento às obras de instalação do Hospital Real de Todos os Santos, iniciado por Dom João II em 1492, bem antes da confirmação legal da Irmandade da Misericórdia de Lisboa em 29 de setembro de 1498. Somente em 1502, foi instalado então o Hospital Real de Todos os Santos, que tinha por fim concentrar todos os hospitais e hospícios da capital portuguesa em um só. Finalizado em 27 de junho de 1564, foi entregue à Misericórdia pelo cardeal Dom Henrique, então regente do trono português.
O mais antigo “Compromisso” da Misericórdia de Lisboa data, portanto, de 29 de setembro de 1498 (data da aprovação do alvará). A partir da 3ª ou 4ª reforma, foram acrescentadas apenas as matérias acerca do dote das órfãs e da doação do Hospital Real de Todos os Santos (1618).
A necessidade de internação de pacientes destituídos de recursos ou recém-chegados ao Brasil, sem família e moradia, acarretou logo no século XVI, a criação das Santas Casas da Misericórdia, segundo os moldes da estabelecida em Lisboa.
Em 1532, a expedição de Martim Afonso de Souza deu origem ao primeiro núcleo colonial - a vila de São Vicente, no atual litoral do estado de São Paulo. Este núcleo se estendeu mais tarde até o interior, originando o povoado de Santos, fundado por Brás Cubas, onde, segundo alguns historiadores, teria sido organizada, em 1543, a primeira Santa Casa no Brasil (CAMPOS, 1943). O surgimento das Santas Casas coincidiu com uma nova política de ocupação de terras inaugurada pela Coroa portuguesa, promovendo a intervenção direta dos empreendedores europeus na esfera da produção, conforme a legislação das sesmarias e o estabelecimento de capitães donatários, todos fidalgos da pequena nobreza, segundo a prática feudal lusa.
Em 1548, a Coroa portuguesa resolveu intervir mais diretamente na questão do povoamento do território brasileiro, nomeando como primeiro governador-geral, Tomé de Souza, fidalgo e rico aventureiro da carreira das Índias. O governo de Tomé de Sousa (1549-1553) foi sucedido por outros quatro governadores-gerais até a União Ibérica em 1580, quando o reino de Portugal se uniu ao de Espanha. A crise do Império do Oriente, onde os portugueses estavam sendo gradativamente substituídos por outras nações; as pressões da burguesia mercantil lusitana para ter cada vez mais acesso ao mercado espanhol na América; a profunda crise nacional que Portugal atravessava com a morte do rei Dom Sebastião, que foi substituído por seu tio, o cardeal Dom Henrique; e profundas ligações entre as duas nobrezas, concretizadas nos laços matrimoniais, foram elementos determinantes para a aceitação de Felipe II da Espanha como rei também de Portugal.
O domínio espanhol sobre o Brasil foi importante na formação de várias das nossas instituições, entre elas a Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e outras que se disseminaram ao longo dos séculos pelas principais cidades e vilas.
A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro foi fundada em meados do século XVI, em data incerta, na praia de Santa Luzia no 2, atual rua de Santa Luzia no 206, onde permanece até hoje. A sua criação costuma ser atribuída por vários estudiosos ao padre José Anchieta, da Companhia de Jesus, que chegara ao Brasil na esquadra do segundo governador-geral, Duarte da Costa, em 1553. Em março de 1582, Anchieta teria acudido a esquadra espanhola comandada pelo almirante Diogo Flores Valdez com destino ao Estreito de Magalhães, que aportara no Rio de Janeiro devido a enfermidades que acometeram sua tripulação. Providenciando agasalhos e remédios, o jesuíta, para abrigar os enfermos, mandara construir um barracão de palma coberto de sapé na orla marítima do morro do Castelo, que teria dado origem à Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e, possivelmente, ao primeiro hospital da cidade.
Houve outros estudos, contudo, que consideraram a data de fundação da Santa Casa anterior a 1582. Segundo o historiador Félix Ferreira (1899), a instituição teria sido criada em 1545 ou 1547, antes da fundação da cidade do Rio de Janeiro (1565), coincidindo com os primeiros núcleos de povoamento das margens da Baía de Guanabara. No período da União Ibérica (1580-1640), em alvará datado de 6 de outubro de 1605, o rei Dom Felipe II de Espanha e I de Portugal concedia à entidade os mesmos benefícios desfrutados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em vista do que alegavam seu provedor e irmãos de que já havia sessenta anos que “existia casa com hospital para enfermos, sacristia, parlatório e é uma das boas da costa, e a algumas faz vantagem notável com sempre ter sua irmandade guardado o Compromisso, fazendo muitas esmolas, casando órfãs e dando ordinárias todos os sábados, conforme a possibilidade da terra”.
Já para Gabriel Soares de Sousa no “Tratado descritivo do Brasil”, em 1587, o hospital junto ao morro do Castelo teria sido iniciativa do terceiro governador-geral, Mem de Sá, com o apoio do padre da Companhia de Jesus, Manuel da Nóbrega. Em 1567, Mem de Sá em curta visita e permanência no Rio de Janeiro, depois da expulsão dos franceses, tratou não só do povoamento da cidade instalada por seu sobrinho, Estácio de Sá, em 1565, como promoveu importantes melhoramentos, entre os quais a construção de algumas igrejas com a sua Santa Casa da Misericórdia e hospital.
Ainda sobre a data de criação da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, José Vieira Fazenda (1902) procurou conciliar as opiniões divergentes, admitindo que os primeiros povoadores tenham sido os fundadores da Misericórdia e que os irmãos desta, animados e auxiliados pelo jesuíta José de Anchieta, tenham edificado o hospital em 1582, com o propósito de nele abrigar os doentes da armada espanhola. De uma forma ou de outra, todos os que discorreram sobre o tema, concordaram que a Santa Casa surgiu ou foi ampliada nesta data, por influência de José de Anchieta.
Depois da expulsão dos franceses do Rio de Janeiro pelo governador geral Mem de Sá, a cidade devido aos seus recursos econômicos naturais, à sua importância estratégica e ao prestígio de seu governante Cristóvão de Barros (1573-1575) perante o rei, tornou-se um centro direto de ação da metrópole, que nesta época dividiu a colônia em dois governos distintos: o das colônias do Sul, cuja sede era o próprio Rio de Janeiro, e o das colônias do Norte, com sede na Bahia. Embora tal divisão tenha sido abolida poucos anos depois (1577), o Rio de Janeiro continuou a ser a metrópole do Sul, centro de resistência contra agressões externas e ponto de irradiação da colonização no território fluminense. A cidade na época somava uma população de 3.850 habitantes, a maior parte índios, e somente 750 portugueses e 100 africanos. A vida econômica da cidade ao longo do século XVI baseava-se primordialmente nos engenhos de açúcar, que inicialmente contaram com a mão-de-obra escrava indígena e, mais tarde, com os negros africanos de Angola. Por outro lado, a falta de políticas de higiene pública e saneamento propiciaram freqüentes epidemias de cólera, febre amarela e varíola, entre outras doenças que atingiam sua população.
A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, regida pela de Lisboa e com os mesmos propósitos desta, foi criada visando acolher os presos, alimentar os pobres, curar os doentes, asilar os órfãos, sustentar as viúvas, enfim, para ser a casa a serviço dos mais carentes, desassistidos e abandonados. Quanto ao tratamento dos doentes em seus dois primeiros séculos de existência, contou apenas com um físico e um cirurgião efetivos, além dos que se ofereciam para auxiliá-los em troca do internamento de doentes particulares e uso das instalações, entre outros interesses. A instituição foi regida pelo “Compromisso” da Misericórdia de Lisboa, do ano de 1618, confirmado pelo alvará de 18/10/1806, alterado pela deliberação da Mesa de 13/05/1838 e reformado em 30 de maio de 1907. A Irmandade da Misericórdia de Lisboa, por sua vez, teve seu primeiro “Compromisso” impresso em 1516, provavelmente já reformado do original de 1499. Este “Compromisso”, que se perdeu com a destruição dos arquivos em conseqüência do terremoto de 1755, dividia-se em 19 capítulos e referia-se inicialmente às 14 obras de misericórdia, sendo sete espirituais: “ensinar os ignorantes, dar bom conselho, punir os transgressores com compreensão, consolar os infelizes, perdoar as injúrias recebidas, suportar as deficiências do próximo, orar a Deus pelos vivos e pelos mortos”; e sete corporais: “resgatar cativos e visitar prisioneiros, tratar os doentes, vestir os nus, alimentar os famintos, dar de beber aos sedentos, abrigar os viajantes e os pobres e sepultar os mortos” (Apud ACADEMIA ..., 1994). Essas obras, a hierarquia entre os irmãos, o modo de enterrar os irmãos, além de outras incumbências, deviam ser cumpridas por seus membros.
Somente em 1618, o “Compromisso” da Misericórdia de Lisboa passou por sua primeira reforma substancial, assumindo um formato que se manteve praticamente inalterado até o século XIX. Esse “Compromisso” de 1618 ganhou mais 22 capítulos, trazendo uma descrição detalhada de como deveriam ser as eleições, das funções e habilidades específicas exigidas a cada um dos integrantes da mesa, além de aumentar a quantidade de irmãos da confraria. As rígidas exigências para a admissão na instituição foram mantidas:
“1 - ser puro de sangue há pelo menos duas gerações, o que equivale dizer: não ter sangue de negro, mouro ou judeu. Tal exigência também recaía sobre a mulher do candidato [esta regra foi abolida no século XIX]; 2 - ser livre de toda infâmia de fato e de direito; 3 - ter idade conveniente: pelo menos 25 anos no caso de ser solteiro; 4 - não servir à casa por salário; 5 - ser isento de trabalhar com suas próprias mãos: em caso de ser oficial mecânico', ser dono de sua tenda; 6 - ser de bom entendimento e saber: que saiba ler e escrever; 7 - ter tenda suficiente para acudir ao serviço da irmandade quando necessário e para não ser suspeito de aproveitar do dinheiro da instituição em benefício próprio.” (Apud MELO, 1997)
O ingresso na Irmandade da Misericórdia significava, assim, o reconhecimento social das posses e a possibilidade de ampliá-las, já que os créditos bancários e comerciais abriam-se para o associado (COIMBRA, 1986).
Provedores da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro
O “Compromisso” da Misericórdia estabelecia que os Provedores fossem:
“homens de autoridade, prudência, virtude, reputação e idade, de maneira que os outros irmãos possam reconhecer como cabeça e lhes obedeçam com mais facilidade; e ainda que por todas as sobreditas partes o mereça, não poderá ser eleito de menos idade de quarenta anos” (ZARUR, 1985, p. 34).
O cargo de provedor era assim geralmente ocupado por políticos influentes, nobres titulares ou ricos comerciantes. De 1582 até 1671 pouco se sabe sobre a instituição, pois um de seus provedores, Thomé Corrêa de Alvarenga, ordenou que fossem inutilizados todos os documentos e livros relativos à Santa Casa, que se encontravam estragados pelos cupins e pela umidade. Sendo assim, durante esses 89 anos a Irmandade da Misericórdia teve 30 provedores, tais como os governadores da capitania e capitães-generais Martim de Sá, em 1605, e seu filho Salvador Corrêa de Sá e Benevides, que ocuparia o cargo por quatro vezes.
Com a criação do vice-reinado no Brasil e a transferência da sede da capital da colônia de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro, em 1763, a provedoria passou a ser ocupada por vice-reis, tais como o Marquês de Lavradio (Luiz de Almeida Portugal Soares Alarcão Eça Mello Silva Mascarenhas) que, a partir de 1774, adotou medidas econômicas severas para recuperar a saúde financeira da Irmandade; e o Conde de Resende (José Luiz de Castro 1793-1802), quando a assistência à população do Rio de Janeiro foi prejudicada devido à medida do Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho Melo) que, através do alvará de 1796, colocou à venda todos os bens da Irmandade.
Segundo nos relatou Dahas Chade Zarur (1985), até o fim do século XVIII a Santa Casa permaneceu sem grandes chances de recuperação econômica devido principalmente às manobras de alguns vice-reis, como o Conde de Resende, que prejudicaram a instituição deixando de prestar-lhe socorro. Ainda conforme Zarur, “a presença da família real não foi das mais úteis à Irmandade”, e durante todo o reinado de Pedro I, a Casa sempre esteve em conflito com o Imperador, por recusar-se a ser mera tutelada de seu Ministério. D. Pedro I usou de sua influência para a nomeação de vários provedores que passaram pela Misericórdia.
Na ocasião em que a família real voltou para Lisboa e D. João VI passou o governo ao Príncipe-Regente, em 1821, o provedor da Santa Casa foi o Coronel Comendador Custódio Moreira Lírio, responsável pela implantação da primeira loteria, com a renda destinada inicialmente para o Recolhimento de Órfãs, tendo também algumas cotas voltadas para a Casa dos Expostos e para os Seminários de São José e São Joaquim, todos órgãos da Santa Casa.
Em 1828, ocupava a Provedoria Joaquim Antônio Ferreira, futuro Visconde de Guaratiba, cuja maior preocupação foi manter os enfermos da Santa Casa longe da epidemia de varíola. Ele indicou para irmão da confraria seu amigo, o português José Clemente Pereira, que combateu as tropas invasoras de Napoleão Bonaparte em Portugal e que, mais tarde, tornou-se provedor-mor da Misericórdia.
José Clemente Pereira (1838-1854): Essa provedoria destacou-se das demais pelo fato de o provedor ter ocupado o cargo por longo período, e por ter promovido ampliações nos serviços prestados pela Santa Casa. José Clemente Pereira tomou posse em 25 de julho de 1838 e permaneceu na Provedoria até 10 de março de 1854, quando faleceu. Foi Membro do Conselho de Estado dos dois únicos imperadores do Brasil, ocupando vários outros cargos políticos importantes, como os de Ministro da Fazenda, da Guerra e da Justiça, e Presidente do Tribunal do Comércio. Participou ativamente das campanhas do Partido Conservador, do qual era líder consagrado, atuando como Presidente do Senado e da Câmara, e foi um dos responsáveis pelo episódio do "Fico" de Dom Pedro I, por ocasião da independência do Brasil do Reino de Portugal. Desde 1822, quando Clemente Pereira começou a exercer influência sobre a família imperial, os conflitos com Pedro I foram amenizados. Na época em que assumiu a função de provedor, o Rio de Janeiro pouco diferia dos primeiros tempos da colônia no que diz respeito ao aspecto sanitário, de higiene e ao progresso material de uma maneira geral. No segundo quartel do século XIX, a Corte contava com mais de 200 mil habitantes. A mortalidade alcançava cifras elevadas devido à precariedade da assistência prestada à população e à ausência de medidas preventivas para conter diversas moléstias graves. O único nosocômio para os pobres era o da Santa Casa, que se encontrava desaparelhado. O patrimônio da Irmandade da Misericórdia naquele tempo era de 187 prédios, foro de 38 terrenos e 151 de outros tantos valores. O Hospital Geral da Santa Casa do Rio de Janeiro, situado no Largo da Misericórdia, era pequeno e inadequado, tornando-se insuficiente para atender a população da cidade que crescia. Nos primeiros anos de sua existência, a situação de algumas enfermarias que se encontravam abaixo do nível do solo, praticamente sem luz, era agravada pelo fato de o hospital não possuir esgoto nem água para o serviço interno, além de ficar junto a um cemitério que recebia três mil corpos todo ano. Para reverter tal quadro, José Clemente Pereira decidiu construir um outro edifício, propondo em Mesa Conjunta de 30/07/1838, que se fizesse a planta do novo hospital, que ficaria a cargo da Academia Imperial de Medicina. Atendendo a uma antiga reivindicação dos médicos da instituição, promoveu em julho de 1839 a transferência do cemitério localizado no interior do Hospital, e da Igreja da Santa Casa, para outro lugar mais afastado do centro da cidade. Desde a lei municipal de 04/10/1830, haviam sido proibidos os sepultamentos nas igrejas, sacristias e conventos. Desse modo, foi instalado o Campo Santo da Misericórdia na Ponta do Caju. Nos anos de 1850, disputando com a Ordem de São Francisco de Paulo, Clemente Pereira obteve a concessão dos serviços funerários pelo Governo Imperial. Dessa forma, a Irmandade adquiriu vários terrenos, ampliando o Campo Santo da Ponta do Caju que passou a se chamar Cemitério de São Francisco Xavier e criando, em Botafogo, o Cemitério de São João Batista. Em 2 de julho de 1840 foi lançada a pedra fundamental do edifício, onde seria instalado o citado Hospital, na rua Santa Luzia. A solenidade contou com a presença do Imperador Pedro II, ainda menor de idade, das Princesas e do Regente do Império, Pedro de Araújo Lima. Inaugurado em 27 de julho de 1852, sua planta original, de autoria do engenheiro Domingos Monteiro, foi modificada em alguns pontos por José Maria Jacinto Rebelo, discípulo do artista francês Grandjean de Montigny, que adotou um estilo neoclássico. Com fins de fornecer acomodações mais apropriadas para os doentes mentais que se encontravam em precárias condições na enfermaria daquele Hospital, Clemente Pereira durante sua gestão promoveu também a construção de um hospício para acolhê-los, situado na Praia Vermelha. Em 1842, foi iniciada a construção do prédio, inaugurado em novembro de 1852 com o nome de Hospício de Pedro II, onde funcionam hoje algumas dependências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Honório Hermeto Carneiro Leão (Visconde e Marquês do Paraná) (1854-1856): Deputado e Ministro da Justiça, ajudou a fundar o Partido Conservador, foi Ministro no Prata (Montevidéu, 1851) e promoveu a criação das províncias do Amazonas e do Paraná. Encontrando a confraria em déficit, não obstante sua breve passagem pela Provedoria, envidou esforços para combater a terrível epidemia de cólera que assolava a Corte e melhorou a sorte das órfãs, dos expostos e enfermos, mantendo-os afastados dos doentes contaminados. Durante a sua administração a Enfermaria da Gamboa passou a ser o Hospício de Nossa Senhora da Saúde. Faleceu no dia 3 de setembro de 1856, provavelmente por ter contraído cólera dos doentes da Santa Casa, aos quais devotou sua atenção.
Miguel Calmon du Pin Almeida (Visconde e Marquês de Abrantes) (1857-1865): Conselheiro, Ministro, Senador e Deputado, chegou a ser Mordomo (administrador, importante cargo na Irmandade da Misericórdia) do Recolhimento das Orfãs e das Desvalidas antes de ser eleito provedor da Santa Casa e tomar posse em 5 de julho de 1857. Realizou diversos melhoramentos e acréscimos à construção do novo Hospital Geral, iniciada por José Clemente Pereira. Obteve do Governo Imperial auxílios e concessões que foram muito úteis às obras assistenciais da confraria. Em sua gestão, também reformou os Estatutos da instituição e montou um consultório oftamológico no próprio hospital da Santa Casa. Foi reeleito duas vezes para a função de provedor, porém não concluiu o último período, falecendo a 5 de outubro de 1865.
Zacharias de Góes e Vasconcellos (1866-1877): Conselheiro, Ministro, Governador, Chefe de Gabinete, Senador e Deputado, teve seu mandato iniciado em 28 de julho de 1866. Assinalou uma das fases mais promissoras da Misericórdia com o término das obras do hospital. Faleceu no exercício do cargo em 1877, encerrando sua gestão com saldo em seus cofres, um fato inédito.
José Ildefonso de Souza Ramos (Barão de Três Barras, e Visconde de Jaguari) (1879-1883): Durante sua gestão foram instalados os serviços de tratamento através da hidroterapia e eletricidade, e foi inaugurada uma clínica para alienados no Hospício de Dom Pedro II. Cedeu ao Governo amplas salas no Recolhimento das Órfãs para novas aulas e gabinetes da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Além dessas medidas, autorizou o tratamento homeopático, com a inauguração de um consultório em 1880 e, posteriormente, com a criação da sexta enfermaria, sob a direção do Conselheiro Saturnino Soares de Meirelles, presidente do Instituto Hahnemanniano do Brasil.
João Maurício Wanderley (Barão de Cotegipe) (1883-1889): Último provedor do Império, era banqueiro e renomado financista. Foi ministro várias vezes e presidente do Banco do Brasil. Obteve doações de amigos para saldar dívidas, entre eles o Barão de Ardora e Conde de Mesquita. Restaurou a capela, realizou obras em todo o sistema hospitalar e educacional, e fundou o Hospital Nossa Senhora das Dores, no bairro de Cascadura, inaugurado em 8 de dezembro de 1884, e destinado ao tratamento de tuberculosos. Dois anos mais tarde, enviou à Europa o médico Augusto Ferreira dos Santos, a fim de que este conhecesse a vacina contra a raiva descoberta por Louis Pasteur. A 25 de fevereiro de 1888 inaugurou mais um órgão da Santa Casa, o Instituto Pasteur do Rio de Janeiro, o primeiro da América do Sul, localizado na rua das Laranjeiras, em prédio de propriedade da Viscondessa de Araújo. Em seu primeiro ano de funcionamento socorrera cerca de 226 pessoas. Ainda durante sua administração instalou o Asilo Santa Maria, na rua da Passagem, numa dependência de outro estabelecimento da confraria. Faleceu em fevereiro de 1889, sendo substituído pelo Conselheiro Manoel de Oliveira Fausto, que permaneceu por dez dias no cargo.
Jerônimo José Teixeira Júnior (Visconde de Cruzeiro) (mar./dez.1889): Com seus esforços conseguiu angariar doações para a criação do Asilo da Misericórdia, destinado a receber as meninas que viviam no hospício da Misericórdia.
Paulino José Soares de Souza (1890-1901): Assumiu a Provedoria da Misericórdia já sob o regime republicano, que trouxe de volta os conflitos entre o governo e a Irmandade, deflagrados por conta do decreto de 11/01/1890, que desanexou o Hospício de Pedro II da Santa Casa. As dificuldades também se deveram aos constantes aumentos de impostos que recaíram sobre a instituição, sobretudo na fase do Encilhamento, o que provocou violenta especulação e quase levou o país à falência, sob a presidência do Marechal Deodoro da Fonseca, cujo Ministro da Fazenda era Rui Barbosa. Sob a gestão de Soares, os leitos do Hospital Geral da Santa Casa acolheram parte dos feridos que participaram da revolta da Armada contra o segundo presidente republicano Floriano Peixoto. Ainda na sua administração foi fundado o Asilo de São Cornélio, mais um estabelecimento de amparo à infância e à juventude, instalado na antiga residência do empresário fluminense Joaquim Cornélio dos Santos, na rua do Catete. Deixou o cargo sem completar o mandato, por ocasião do seu falecimento em 1901, quando então assumiu a Provedoria o Escrivão da Irmandade Francisco do Rego Barros Barreto, o segundo cargo mais importante na estrutura hierárquica da instituição que, conforme determinava o “Compromisso”, deveria assumir a gestão da Casa até a eleição do novo provedor.
Miguel Joaquim Ribeiro de Carvalho (1902-1938): Senador, exerceu o maior período da Provedoria. Atraiu à Irmandade figuras importantes da vida nacional como Prudente de Morais Filho, Conde Cândido Mendes, Conde Afonso Celso, Rui Barbosa, Guilherme Guinle e Lineu de Paula Machado, entre tantos outros. Com a demolição do Morro do Castelo, transferiu o hospital de crianças São Zacharias para a entrada do Túnel Novo, modernizando sua aparelhagem e atendendo a demanda por assistência à infância pobre que havia na Zona Sul. Durante sua gestão, com a epidemia de gripe espanhola que chegara ao Brasil em 1918, ao final da Primeira Guerra Mundial, os gastos no tratamento dos enfermos com a nova doença deixaram a Santa Casa mais uma vez em déficit. Foi responsável pelo reaparelhamento da oficina gráfica da Casa dos Expostos que, a partir do final do primeiro quartel do século XX, passou a imprimir o Relatório Anual, tarefa até então realizada pelo Jornal do Commercio. Deixou a Provedoria após 36 anos de gestão.
Estrutura e funcionamento
A assistência pública no Brasil não recebia subvenções e era administrada por particulares. As associações que se incumbiam da assistência dividiam-se em duas categorias: as que distribuíam auxílio a todos os necessitados em geral tendo como modelo a Santa Casa da Misericórdia, e as que se ocuparam dos próprios sócios, tais como as Irmandades Religiosas, as Ordens Terceiras e as Associações de Beneficência, de socorro mútuo, representadas estas últimas, pelas Beneficências Portuguesas, com seus hospitais, havendo ainda associações beneficentes inglesas, francesas e italianas.
Antes da construção das Santas Casas, os soldados e marinheiros eram medicados nas residências dos povoadores. Depois de instaladas as Santas Casas, os militares passaram a ser internados nelas, sendo ali assistidos pelos cirurgiões e físicos. Até 1770, era destinado um conto de réis por ano à Misericórdia do Rio de Janeiro pelo El-Rei, a fim de cobrir os gastos da Santa Casa com a assistência hospitalar aos soldados da guarnição de terra, aos marinheiros e aos galés da capitania. As Irmandades da Misericórdia eram as únicas em condições de prestarem assistência aos soldados enfermos e feridos até o século XVIII, quando foram criados os hospitais militares por iniciativa do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, chefe do governo metropolitano.
Ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte, a assistência hospitalar continuou a ser realizada em grande parte pelas Santas Casas, fundadas e mantidas pelas Irmandades da Misericórdia. Sem contar com o auxílio governamental, as Santas Casas viviam da caridade pública, muito incentivada na época do reinado de Dom Pedro II (1840-1889) pelos títulos nobiliárquicos e as comendas que o Imperador concedia aos homens e mulheres que faziam generosos donativos às Irmandades da Misericórdia. A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro teve vários benfeitores que ajudaram a mantê-la através de donativos, entre os quais Inácio da Silva Medela, Padre Marcos Gomes Ribeiro, José de Sousa Barros, Capitão Manuel Mendes Salgado Guimarães, Tenente José Dias da Cruz, Antônio Rodrigues de Miranda, Dona Luísa Rosa Avondano Pereira, Thomé Ribeiro de Faria, Barão de Guapimirim.
Os governos Imperial e Provincial, embora não subvencionassem as Misericórdias, concediam-lhes vantagens e benefícios como a isenção de impostos, taxas, selos e o privilégio da organização de loterias, cuja renda proveniente da venda de bilhetes era aplicada no custeio das Santas Casas.
A Santa Casa do Rio de Janeiro e a da Bahia destacaram-se das demais em relação ao seu patrimônio, resultante de doações e legados além de bens imóveis e apólices da dívida pública. Sendo assim, nestas instituições alguns profissionais recebiam modestos vencimentos a partir do século XX. Todavia, o mais comum era que todos os médicos das localidades das diversas Santas Casas se revezassem no atendimento aos pacientes sem receber qualquer remuneração. A prestação de assistência médico-cirúrgica era gratuita.
O setor médico cirúrgico ficava a cargo dos médicos, enquanto a administração era da responsabilidade de leigos, ou seja, dos diretores da Irmandade da Misericórdia, provedores e mordomos. Estes contratavam Irmãs de Caridade, religiosas católicas das Ordens de São José e de São Vicente de Paulo, que se incumbiam da direção e dos serviços de todas as instituições mantidas pela Irmandade da Misericórdia. As irmãs eram responsáveis pela assistência imediata aos doentes e só não desempenhavam as funções de quarteiras e serventes, entregues a escravos e, depois, assalariados. Data de setembro de 1852, a vinda das Irmãs de Caridade da Associação de São Vicente de Paulo para assumirem trabalhos de enfermagem, serviço administrativo, assistencial e religioso na Santa Casa do Rio, ficando subordinadas diretamente ao Provedor (PADILHA, 1998).
A Santa Casa administrou e manteve várias instituições de caridade e/ou saúde na Corte como o Hospital Geral, o Hospício de Pedro II, o Recolhimento de Órfãs, a Roda dos Expostos, a enfermaria de Nossa Senhora da Saúde, no Morro da Gamboa, e quatro consultórios gratuitos, todos, de certa forma, um prolongamento da sua obra social, além do serviço de enterros, cuja exclusividade existe até hoje junto com o controle de 13 cemitérios no Rio de Janeiro.
O Recolhimento das Órfãs era destinado a abrigar meninas órfãs, filhas legítimas, cristãs velhas, donzelas desamparadas, com idade entre 9 e 11 anos. E a Roda dos Expostos tinha a função de acolher as crianças abandonadas, e que não tivesse sua filiação reconhecida (GANDELMAN, 2001).
A Irmandade da Misericórdia entre os séculos XVIII e XIX foi também mantenedora dos lazaretos instalados no país, que eram hospitais de quarentena nos quais se recolhiam os leprosos. A assistência médica era prestada por facultativos contratados pela Câmara Municipal ou pelo Governo da Província. Estes lazaretos foram extintos somente no século XX, quando os governos dos Estados criaram os hospitais-colônias, onde os doentes de hanseníase passaram a ser obrigatoriamente confinados.
A partir da metade do século XIX os alienados foram considerados doentes mentais e passaram a contar com hospitais especiais para seu acolhimento no Brasil. O Hospício de Pedro II foi o primeiro a propiciar um tratamento mais humano a esses doentes, à base de sedativos e de métodos terapêuticos preconizados pelo médico francês Philippe Pinel, que substituíram os métodos corretivos e de coerção. A Santa Casa do Rio de Janeiro foi, assim, pioneira na aplicação desses métodos de tratamento dos alienados, considerados mais modernos na época. Em 1844, durante a gestão de Clemente Pereira, foi enviado à Europa o médico Antônio José Pereira das Neves para visitar os manicômios e estudar os novos processos terapêuticos de Philippe Pinel. Com a República, o Hospício foi desvinculado da Santa Casa, passando à administração federal, quando seu nome foi mudado para Hospital Nacional dos Alienados.
A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro além de seus objetivos assistencialistas, firmou-se também ao longo dos séculos como espaço de exercício e ensino da medicina. Por ocasião da primeira reforma do ensino médico, em 1813, a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, então denominada Academia Médico-Cirúrgica, se transferiu do Hospital Militar para as dependências da Santa Casa, ocupando duas salas de seu hospital. Desde então até o ano de 1918, quando foi finalizada a construção do prédio para acomodá-la, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro ficou instalada nas dependências da Santa Casa. Entre 1856 e 1918, ocupou o imóvel vizinho ao Hospital Geral, onde funcionara anteriormente o Recolhimento das Órfãs. Este prédio, mesmo depois da transferência da Faculdade de Medicina para a Praia Vermelha, continuou acomodando o instituto anatômico, a biblioteca e o diretório acadêmico até os anos de 1940. Por outro lado, o terreno onde foi construído o prédio da Faculdade, na Praia Vermelha, pertenceu originalmente à Santa Casa, tendo sido adquirido no tempo da provedoria de José Clemente Pereira.
Desta forma, os doentes e cadáveres da Santa Casa foram utilizados para o ensino prático de anatomia e outras disciplinas do currículo da Faculdade. Os desentendimentos entre a Provedoria da Irmandade e a Congregação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro eram constantes e quase sempre diziam respeito ao controle das enfermarias ou ao espaço utilizado por professores e alunos. Os profissionais de medicina exigiam, em vão, a direção dos serviços de enfermagem e de farmácia, de economia doméstica e da própria chefia do hospital.
Curar enfermos era apenas uma das sete “obras corporais” propostas pela Irmandade da Misericórdia em seu “Compromisso”. Na verdade, todos os piedosos benefícios e obras de caridade feitas pelos católicos que ajudavam a Santa Casa encontravam-se nos evangelhos.
Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro
A Santa Casa tinha a grande responsabilidade de manter o maior hospital do Rio de Janeiro até o final do século XVIII, que oferecia assistência à população pobre da cidade e seus arredores, sem distinção de raça ou nacionalidade. A maior causa dos constantes desentendimentos entre a Irmandade e as autoridades da província do Rio de Janeiro, ao longo os séculos XVII e XVIII, estava relacionada aos serviços prestados pelo hospital aos militares adoentados e feridos, pois vários governantes se recusavam a cumprir as determinações régias que estipulavam um pagamento anual à instituição religiosa, a fim de cobrir os gastos das tropas militares que sempre foram acolhidas pela Misericórdia, mesmo depois do estabelecimento do hospital militar.
A Misericórdia não se preocupava apenas em garantir cuidados médicos a seus enfermos, mas também tratava de oferecer a todos os internos conforto espiritual, contando com a ajuda de um sacerdote, o “capelão da agonia”, que celebrava missas no hospital e ministrava os sacramentos da comunhão, confissão e extrema-unção, ratificando assim a proposta contida em seu regulamento, que procurava o bem-estar do corpo e da alma dos que se encaminhavam à Santa Casa.
As despesas de grande parte dos seus enfermos eram de sua responsabilidade, fornecendo-lhes toda a assistência médica e espiritual, além do sustento durante a internação. Entretanto, alguns doentes arcavam com os custos de sua estadia e dos remédios e cuidados necessários à cura, pagando ao nosocômio da Irmandade uma diária. Entre julho de 1809 e junho de 1810, o hospital recebeu cerca de 1.545 enfermos pobres, dos quais 293, aproximadamente, tiveram condições de pagar suas despesas.
No caso de internação de escravos, cobrava-se uma diária ao seu respectivo senhor, mais os custos com os medicamentos fabricados na botica do hospital e, se fosse preciso, as despesas com o funeral do paciente. Na verdade, o socorro prestado pelo hospital aos escravos quase nunca era pago pelos seus donos que, em última instância, acabavam doando o cativo à Irmandade.
Os recursos da Santa Casa para manter o Hospital Geral provinham em parte destes pagamentos, além de certos privilégios concedidos pela realeza, como o monopólio do aluguel de esquifes e, principalmente, dos legados e doações feitas por particulares, que deixavam imóveis e dinheiro para a Irmandade em troca da celebração de missas pela sua alma, ou mesmo doações de pessoas que, tendo usufruído do atendimento do hospital e sem condições de pagar o próprio tratamento, deixavam os poucos bens que possuíam para tentar ressarcir a instituição de alguma forma. Contudo, essas doações e legados eram consideradas insuficientes para manter as contas da Santa Casa estáveis, o que dificultava a administração do hospital e das outras instituições mantidas pela confraria.
Segundo o autor Luiz Octávio Coimbra (1986), seus administradores sempre alegavam dificuldades financeiras como estratégia para justificar a concessão de novos privilégios, visto que nem sempre as dívidas apresentadas eram, de fato, reais. Através de consulta à receita da Irmandade ao longo dos anos, Coimbra concluiu que a maior parte dos legados e doações recebidos não eram aplicados na filantropia, sendo desviados para a conservação e ampliação do patrimônio financeiro e imobiliário da confraria. Neste sentido, tornou-se expressiva a declaração do provedor Miguel de Carvalho com relação ao período de 1902 a 1906: “quase duplicamos o patrimônio constituído de títulos; restauramos e melhoramos sensivelmente parte do patrimônio predial, elevando de modo apreciável a sua renda” (Apud COIMBRA, 1986, p. 44). Os serviços hospitalares ficaram então prejudicados, não conseguindo responder às necessidades da população carente que se diversificava e crescia nos primeiros anos do século XX. A forma adotada para minimizar esse problema foi a cobrança na prestação de serviços médicos e hospitalares, evitando-se internamentos gratuitos. A partir de 1917, a Irmandade passou a exigir a apresentação de atestado de pobreza para que o enfermo tivesse atendimento gratuito, tornando-se igual o número de enfermos contribuintes e internos gratuitos. Além disso, os enfermos que pagavam pelos serviços começaram a ter atendimento diferenciado, diminuindo as taxas de mortalidade nos hospitais.
Assistência aos Presos
A assistência aos presos era uma das principais obras do “Compromisso” da Misericórdia, que lhes fornecia roupas e alimentos, além de auxílio médico e jurídico, conforto espiritual e sepultamento dos que eram condenados à morte.
Os Mordomos dos presos eram os irmãos da Misericórdia responsáveis pela seleção dos prisioneiros que poderiam ser socorridos pela instituição. Eles deveriam confirmar o estado de pobreza e desamparo em que se encontrava o preso e julgar o requerimento daqueles que se dirigiam à Mesa da Santa Casa em busca de ajuda. O requerente deveria se encontrar há mais de um mês na cadeia e a sua acusação não poderia ser por dívidas.
Os recursos destinados aos presos vinham sobretudo de concessões feitas pelos monarcas diretamente à Misericórdia, que sempre recorria aos privilégios régios à medida que o número de presos crescia na capital do Império.
Em relação aos escravos presos, a Santa Casa costumava cobrar de seus senhores as despesas relativas à proteção do respectivo cativo encarcerado, porém era bastante comum não receber um só centavo pela caridade prestada.
Outra prática da Santa Casa em benefício dos necessitados em questão foi a de apresentar, em datas comemorativas, uma lista com o nome de vários presos a Dom João VI, implorando o perdão dos condenados ao degredo em Angola ou em outras partes do império luso e mesmo daqueles que ainda não tinham uma sentença definida.
Havia um acordo entre o Governo e a Misericórdia, nem sempre cumprido pela primeira parte, de que se a corda presa ao pescoço do condenado à forca arrebentasse no momento em que o carrasco a soltasse, a confraria jogaria seu manto sagrado por cima do condenado, que não mais deveria ser submetido à pena, por vontade de Deus. Na época do julgamento de Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier), considerado líder do movimento pela emancipação do Brasil do Reino de Portugal, em 1792, a Santa Casa chegou a contratar um advogado para defendê-lo. Além desse apoio material, deu-lhe conforto espiritual, acompanhando-o a caminho do cadafalso e em seu cortejo fúnebre, assim como fazia com todos os condenados à forca.
Sepultamentos
O estatuto da Misericórdia com relação aos rituais fúnebres definia o número de missas a serem celebradas pela alma do irmão falecido. Quando algum membro da Irmandade falecia, todos os irmãos eram convocados a comparecer à Igreja da Misericórdia e obrigados a rezar 14 Padre-Nossos e 14 Ave-Marias.
A Santa Casa não só se preocupava com o enterro dos membros da sua Irmandade e seus familiares, mas determinava que esta era uma das principais obras constantes em seu “Compromisso”, sendo a única que tinha o monopólio dos serviços funerários em Portugal e em suas colônias, o que lhe garantia sua maior fonte de renda.
Conforme a lei, aquele que desobedecesse ao privilégio da Misericórdia deveria ser excomungado, e ainda pagaria uma multa. Isto não garantiu, porém, a ausência de acirrados conflitos entre a Misericórdia e outras irmandades na disputa do “monopólio da morte” que, de qualquer maneira, receberam autorização da Misericórdia para realizar rituais fúnebres por preços mais baixos.
Na capital do Império, o monopólio dos serviços funerários foi concedido pelo Estado à Santa Casa por meio da lei nº 583 de 5 de fevereiro de 1850. Em troca, a Irmandade ficou responsável pela construção e administração da Enfermaria de Nossa Senhora da Saúde, mais tarde (1856) Hospício de Nossa Senhora da Saúde, na Gamboa; da Enfermaria de São João Baptista da Lagoa, reinaugurada em 1855 com o nome de Hospício de São João Baptista da Lagoa, em Botafogo; e da Enfermaria São Francisco Xavier, transferida em 1872 para a Praia de São Cristóvão com o nome de Hospício de Nossa Senhora do Socorro. Esses estabelecimentos tinham a finalidade de combater as epidemias que acometeram a cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX, através da assistência às populações pobres atingidas. Embora tenham funcionado precariamente, a Irmandade carioca teve o monopólio dos serviços funerários garantido. Esta prática foi adotada tanto pela Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro como pela da Bahia. As outras irmandades que conseguiam obter autorização para enterrar seus mortos geralmente eram constituídas por negros e mulatos, a maioria escravos. No Rio de Janeiro, no final do século XVIII, a única irmandade branca que obteve licença da Misericórdia para enterrar seus irmãos foi a da Santa Cruz dos Militares, que ao invés de pagar por sepultamento como as outras, pagava um valor anual.
O “Compromisso” garantia as despesas com a encomendação dos corpos, o sepultamento e a celebração de uma missa para os pobres e necessitados que não tinham condições de pagar por um ritual fúnebre mínimo. A Santa Casa também arcava com todas as despesas de enterro de alguns soldados e dos escravos, cujos senhores quase nunca se lembravam de restituir à Irmandade os custos necessários.
Esmolas
A distribuição de esmolas a pessoas pobres ou que, em algum momento, se encontrassem em dificuldades econômicas, foi uma das formas mais diretas de auxílio prestado pela Santa Casa. Os necessitados que desejassem obter a ajuda da Irmandade, deviam encaminhar uma petição à Mesa, que passava a averiguar a respeito do solicitante com padres de suas paróquias, a fim de confirmar o estado de desamparo em que se achavam e a honestidade em que viviam, condições essenciais para que pudessem receber as esmolas oferecidas pela instituição, que poderiam ser em dinheiro, roupa ou até mesmo abrigo.
Publicações oficiais
Relatórios dos Serviços, publicados anualmente, e a Revista da Santa Casa.
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Ficha técnica
Pesquisa - Jacqueline Cabral.
Redação - Jacqueline Cabral e Verônica Pimenta Velloso.
Revisão - Francisco José Chagas Madureira.
Atualização – Maria Rachel Fróes da Fonseca, Ana Carolina de Azevedo Guedes.
Forma de citação
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DO RIO DE JANEIRO. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1970). Capturado em 21 nov.. 2024. Online. Disponível na internet https://dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/dicionario
Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930)
Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz – (http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br)